domingo, 31 de dezembro de 2006

Revista Piauí


capa da número 1

acrescentando à lista das coisas boas de 2006 a chegada da Revista Piauí, em outubro deste ano. a revista é um soco de direita no olho do aferrado leitor de escritos ligeiros e epidérmicos. é preciso ler Piauí, degustando-a. textos para quem tem fôlego, longos e densos, precisam ser descobertos, sublinhados. reúne jornalismo literário, ficção, humor, poesia, sortilégios, imagens... sem editoriais previsíveis ou fixos, há uma certa territorialidade das diferenças nos escritos em toda a revista (felizmente a humanidade continua produzindo diferenças!)

a edição de dezembro contém dois interessantes textos: o primeiro, uma crítica tão sofisticada “que chega a ser humilhante” de Roberto Schwarz, escritor e crítico literário, sobre a prosa de Gilda de Melo e Sousa; e o outro, dialética do pop, do escritor e diplomata Marcelo O. Dantas, análise seminal, definitiva, que explica a permanência dos Beatles em meio ao “cinismo e desesperança do século XXI”. na versão on-line, sugestões de sites para ler, ver, ouvir os Beatles.

Se não conhece a Revista Piauí dá uma passada lá.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Call me maria

...sei que algo falta e por isso, meu bem, desfaço os nós que me prendiam ao chão que era tão frio e tão seu. sigo de ti separada, para poder assim, definhar esse calor que aparece principalmente em tardes de sábados puramente inertes. aqui, há músicas e livros para contar o tempo por mim. cartola para cantar meu choro e clarice para me desenhar. um dia, quem sabe, essa minha azia, essa minha dor, esse meu enjôo de ti passe tão rápido como veio. e aí, beibe, te conto como foi ser tão viva e cheia de excessos.

até,

m.

Natália Kataoca in: Caneta Emprestada

domingo, 24 de dezembro de 2006

Campos de Carvalho

OS SINOS DE IS

Meu coração é como o frio espectro de Is,
a submersa:
cobrem-no turvas águas silenciosas
e a fluida fauna dos pecados e das penas
que eu vivi outrora, quando vivo.

Tudo é profundo, inerte, escuro,
neste meu grande mundo extinto,
e é em vão que ainda perpassam sobre os seus escombros
sombras de sonhos, lívidas, incertas,
como peixes sonâmbulos.

De quando em vez, porém,
sinto nascer de mim, como de um estranho abismo,
cantos plangentes, mil vozes em coro,
que me surpreendem e animam como deuses
ou me apavoram.

Não sei como explicar - ninguém o sabe -
esses cantos funéreos ou divinos
que assim despertam e vibram no meu peito,
em meio à grande e densa noite de minha alma,
como sinos submersos...

in: RevistaAgulha

Pela mídia

Na mídia on-line algo sobre cinema e literatura.

Werner Herzog

Ontem na folha:
Werner Herzog filma na Antártida e diz que lá não é um território inóspito:

- “Temos café, salão de barbeiro, estação de TV, caixa automático. De que mais uma pessoa precisa?"

Esperemos então mais essa obra do cineasta alemão, enquanto isso, rever "Fitzcarraldo" e "Nosferatu".

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Orhan Pamuk

Maior romancista turco da atualidade, Orhan Pamuk, recebeu em 2006 o Nobel de Literatura. Nascido numa família classe média próspera de Istambul, estudou fora de seu país, e desde 1974, dedica-se à literatura.
No Brasil,foi lançado, nesse 2006 seu oitavo romance Neve, (Cia das Letras), uma obra política.
Em entrevistas recentes, Pamuk recusa-se a falar em política. Prefere dizer de seu novo romance, “Istambul”, um livro sobre sua cidade, de memórias, autobiográfico.

Hoje, em El País Orhan Pamuk fala da melancolia contida em seu romance Istambul:

“Em Istambul queria fazer a crônica de nossa mágua turca. Há algo que faz com que a melancolia turca seja especial, única: ela possui elementos morais, aonde preside a idéia que não buscamos perseguir o êxito, nem a glória, nesse caso estamos preparados para a derrota. Trata-se de um conceito que inclui a humildade, não se trata de conseguir dinheiro, ou mulheres maravilhosas. Nossa noção de melancolia está mais relacionada com um conceito japonês que contempla a nobreza do fracasso.”

O mais interessante de sua entrevista é quando Pamuk fala das conotações da melancolia:

“Tal como entendo, (a melancolia) é um estado vivo, uma tristeza cheia de vitalidade e energia que, ao invés de fecharmos os olhos, nos abre de par em par para o mundo. (...) ademais, meu afã por viver, por reunir impressões visuais, por contar, por escrever, por possuir a realidade através da arte, procede, unicamente, desde a melancolia, e eu gosto que assim seja.”

Trecho do romance Neve (genial):

“(...) Foram os comunistas e sua rádio de Tiflis que incitaram o orgulho tribal, e fizeram isso porque queriam dividir e destruir a Turquia. Agora todo mundo está mais orgulhoso…e mais pobre.”

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Antes da noite natalina uma máxima de Sainte Beuve:

“Tudo que faças ou tudo que sejas, há sempre lá, noutro hemisfério distante, todo um mundo que te despreza e te ignora.”

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Ana Cristina Cesar

EXTERIOR.DIA. Trocando minha pura indiscrição pela tua história bem datada. Meus arroubos pela tua conjuntura.
MAR, AZUL, CAVERNAS, CAMPOS e TROVÕES. Me encosto contra a mureta do bondinho e choro. Pego um táxi que atravessa vários túneis da cidade. Canto o motorista. Driblo a minha fé. Os jornais não convocam para a guerra.Torça, filho, torça, mesmo longe, na distância de quem ama e se sabe um traidor.Tome bitter no velho pub da esquina, mas pensando em mim entre um flash e outro de felicidade. Te amo estranha, esquiva, com outras cenas mixadas ao sabor do teu amor.

in: A Teus Pés - editora ática, 1999.


Li em algum lugar que uma mulher que escreve poemas tem 80% mais de chance de estar calma e, de repente, dar um berro e queimar você enfiando o cigarro bem no seu olho, quase sem motivo nenhum.

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Schopenhauer num dia de calor

hoje acordei inteira, meio gauche, meio droit. nesses dias, de ar rarefeito, volto à Schopenhauer, num ensaio sobre a dor. a vida de cada homem - e como exige a dedução, a minha inclusive - carrega em seu aspecto mais minucioso, a face de comédia. mas que também, naquilo que é aparente, a vida do homem é uma contemplação trágica. E sigo o filósofo, sem tirar nem por: “o trabalho, os desejos, os medos cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia”. conectados, o escárnio e o desespero não nos permitem conservar a dignidade de uma personagem trágica, por isso, como sobreviventes, representamos o papel de cômicos, esse o intento de cada ato, dia pós dia. depois, o nocaute do poeta, “os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito...” e assim, vejo minha breve vida, um capítulo menor, é verdade, dessa tragicomédia ordinária coletiva, mas como exige a lógica, aí também enceno meu papel. o filósofo não é mesmo complacente, ah isso não: “as aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia.” a morte, a imunidade de nossa compaixão. hoje acordei inteira, meio trágica, meio cômica, num dia de escasso sabor.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Meteorologia

as previsões sempre se cumprem aqui:
amanhã teremos um domingo de sol.
então, vou contemplar essa luz
que irradia em esplendor...
não como hoje,
que nem notei se era dia ou noite,
tão narcotizada que estava em meu silêncio.

A velha e a nova


Listas, também tenho as minhas. sobre algumas coisas que vi e li. de extra, o que fez falta neste ano que finda e algumas ilações para 2007.

Filmes

O Céu de Suely, Karim Aïnouz.

Iguatu, cidade do Ceará, sertão profundo, céu azul. Ali, basta ligar a câmera e o céu hiper iluminado aparece em sua generosidade. Esta, no entanto, não é a condição de vida da protagonista do Céu de Suely, uma mulher que volta a terra natal com um filho no colo, deixou seu marido em São Paulo que desaparece. Fragilizada pelo abandono, tenta se deslocar, para outro caminho que ela mesma não sabe qual é. Fugir do vazio, da imobilidade do tempo e do lugar. Busca então uma salvação para sua condição. O filme tem - además da luz do sertão, a fotografia estourada e linda, a trilha sonora, a competente direção de atores - um ótimo argumento. (um filme que traz algo de mim...)


Plataforma, Jia Zhang-te.

Um filme contemplativo, com a exploração de espaços e tempos, simplificação de diálogos e cheio de referências à geração do jovem diretor Jia Zhang-te. A pós-revolução cultural chinesa e a abertura de suas fronteiras ao ocidente, o tema dessa película. A música, a propaganda, a implosão dos espaços e dos valores cotidianos contemplam o olhar para os dilemas entre o novo e o velho na China contemporânea.

http://www.contracampo.com.br/63/jiazhangke.htm


O Sabor da Melancia, Ming-Liang

Um filme intrigante, com um roteiro idem do diretor tailandês Tsai Ming-Liang. Numa metrópole há falta de água e uma invasão de formigas e melancias. Mas o enredo centra-se na relação de um homem e uma mulher e na falta de comunicação entre seres humanos. Composições de cenas interessantes, o diretor brinca com cores, silêncios, símbolos e metáforas. Para ver, ouvir, refletir e entediar.


Livros

Juventude, de J.M.Coetzee (Nobel de Literatura 2003).

Jonh, jovem aspirante a escritor, sai da Cidade do Cabo para se aventurar na Londres dos anos 60. Um ser à deriva: não se livra de sua condição de estrangeiro, nem das tiranias de sua consciência. Pelas ondas do rádio escuta poesias de seu tempo e, às vezes é feliz, por morar no mesmo planeta de poetas como Joseph Brodsky, Ingeborg Bachmann, Zbigniew Herbertyum. Um livro que nos faz viver literatura.

Eu não sou cachorro não. Paulo César de Araújo.

Mais que um livro com um título bacana, esse cahier de memórias e densa tese trata do lugar da música popular cafona no tempo da ditadura militar. Sem pisar no território comum do que já foi escrito, falado, propagado sobre os anos de chumbo, o autor subverte o senso comum que os cantores e compositores cafonas eram cúmplices com o regime, e comprova, ainda, que muitos artistas da MPB estiveram bem mais próximos dos militares.

Música

- Jorge Drexler: 12 segundo de oscuridad
- Chico Buarque, Carioca
- Antony & the Johnsons, I am a bird now
- Aviões do Forró, Vol 3
- Cidadão Instigad, O método túfo de experiências
- Nação Zumbi, Futura
- Vanessa da Mata, Essa boneca tem manual
- Dj Dolores, Aparelhagem.


Televisão

No direction home. Bob Dylan (Telecine)

Documentário de Martin Scorsese sobre os primeiros anos (1961-1966) desse herói folk, nascido Robert Allen Zimmerman. Dylan abriu suas memórias para o diretor contando, entre outras coisas, de suas influências - Hank Williams, Muddy Waters, Johnny Ray, Woody Guthrie. E mais, os depoimentos de personalidades como Allen Ginsberg, Joan Baez, Dave von Ronk, Suze Rotolo, Pete Seeger etc. No direction home é um documentário definitivo sobre Dylan.O DVD, já lançado no Brasil, acompanha extras com apresentações inéditas.

Na Vênus Platinada

Central da Periferia, em Fortaleza, o melhor de todos. O quadro Minha Periferia faz ver o “show da vida” e depois desligar a tv. Cobras & lagartos: novela das 7, bom humor, crítica ao consumismo e um roteiro sem muito açúcar e afeto.


2006: o quê fez falta

- ver o sol morrer no mar
- comer um cachorro-quente na esquina
- dançar
- encontrar mais meus amigos
- viajar para Juazeiro do Norte
- andar pela cidade sem destino
- ver você fazer um gol bonito
- chorar com a miséria de cada dia
- dar tempo ao tempo
- ouvir John Coltrane, numa tarde tranqüila
- ler mais poesia (nunca é demais)

2007: programas imperdíveis

- subir a serra e saborear fondue de chocolate
- retomar a escrita do roteiro sobre Floro Bartolomeu
- fazer um curta
- visitar o Ricardo, aonde quer que ele esteja
- me desfazer de vários livros
- dizer que te amo no café da manhã
- tomar banho de mar e comer caranguejo com uma gelada
- pedalar mais minha bike
- dirigir devagar pela direita e transitar pela esquerda, sem culpa
- ir de carro até Pipa, com a família, sem pressa
- pegar o sol com a mão.

Prá você que é meu natal, feliz amor!

Para todos, Feliz Ano Novo!

domingo, 10 de dezembro de 2006

Minha Mãe

by Amy Tam


As palavras mais abomináveis que disse em minha vida para outro ser humano foram para minha mãe. Eu tinha dezesseis anos. Surgiram de meu peito atormentado e as deixei cair como uma fúria de granizo:

- Te odeio, desejava que estivesse morta.

Esperei que se desmoronasse, atingida pela crueldade de minhas palavras, porém ela seguiu de pé e fortalecida, com a maçã do rosto levantada e os lábios estirados num sorriso de louca.

- Muito bem, suponha que morro - disse ela, então já não serei tua mãe.

Tínhamos muitas coisas parecidas. Uma vez tentou se matar de verdade, correndo na rua, sustentando uma faca contra a garganta. Ela também tinha o peito atormentado. E o que lançava em minha direção era rápido e mortal feito raios.
Depois de longas discussões não falava comigo durante dias, me torturava, era como se não sentisse absolutamente nada por mim. Para ela eu estava perdida. E eu perdia uma batalha depois de outra, perdia todas: nas vezes em que me criticava, me humilhava diante de outros, me proibia de fazer isto ou aquilo, sem sequer escutar meus argumentos. Jurei para mim mesma que jamais esqueceria essas injustiças. As guardaria, endureceria meu coração, me faria tão impenetrável como ela.
Recordo isto agora porque também recordo outra ocasião, faz uns dois anos, eu tinha 47 anos e já era uma pessoa distinta, havia me convertido em escritora, em alguém que usa a memória e a imaginação. E precisamente estava escrevendo uma história sobre uma menina e sua mãe quando o telefone tocou.
Era minha mãe, o que me surpreendeu. Alguém teria ajudado ela fazer a ligação? Há três anos tinha começado a perder a memória devido ao Alzheimer. No inicio, esquecia de passar a chave na porta. Depois esqueceu onde vivia. Esqueceu quem eram as pessoas e o que elas significavam. Ultimamente era incapaz de recordar muitas de suas dores e preocupações.

- Amy – disse, e começou a falar rapidamente em chinês – Algo acontece com minha cabeça. Acho que estou ficando louca.

Contive a respiração. Normalmente podia dizer apenas duas palavras seguidas.

- Não te preocupes – comecei a dizer.

- É verdade – prosseguiu. Sinto-me como se não pudesse recordar de muitas coisas. Não me lembro do que fiz ontem. Não me lembro do que aconteceu muito tempo atrás, do que te fiz...

Falava como alguém que estava se afogando e tinha conseguido tirar a cabeça da água, pela força da vontade de viver, e se dava conta que a margem estava muito longe, do quanto era impossível alcançá-la. Falou desesperadamente.

- Sei que fiz algo para te fazer mal.

- Não –disse eu - É sério, não te preocupes.

- Fiz coisas terríveis. Porém agora não me lembro o quê. E apenas quero te dizer isso. Espero que possas esquecer da mesma forma que eu esqueci.

Tentei rir para que ela não percebesse que me partia a voz

– É sério, não te preocupes.

- Certo, só queria que soubesse disso.

Depois de desligar chorei de felicidade e também de tristeza. Voltei a ser uma menina de dezesseis anos, porém a angústia que tinha no peito havia desaparecido.
Minha mãe morreu seis meses depois. Mas antes me deixou as melhores palavras para me curar, tão sinceras e eternas como o extenso céu azul. Juntas sabíamos, em nossos corações, o que devíamos recordar e o que podemos esquecer.

IN: The New Yorker.
dezembro de 2001.

Traduzi de La Insignia

domingo, 3 de dezembro de 2006

Depois de uma partida de futebol

“...às oito horas tenho que está na posição de atendimento da empresa. já são três horas, e essa cerveja não me deixa sair daqui”... . verte o copo e reproduz sua fala no telemarketing: “Bom dia senhor! Você está falando com Jonas, da Telemar, seu CPf é...?” naquela noite ele saiu para jogar futebol com seus amigos. fim de jogo, precisavam comemorar a vitória do time. Jonas não imaginava que a noite apenas começava naquele bar de terceira, bebida de primeira, centrado no coração da Varjota. sua bermuda de estampas hawai combinava com o nome do lugar: Caribe´s Bar. afora o nome, o lugar não lembrava em nada o clima caribenho. velhas mesas mal-arrumadas, toalhas com cheiro de mofo, luzes de mercúrio acentuavam o aspecto sujo e suspeito do ambiente. um senhor ao teclado sussurrava músicas, a voz quase inaudível e os acordes programados faziam qualquer canção executada ser sempre a mesma. mas a vida pulsava no Caribe´s Bar naquela terça-feira. de chegada, Jonas viu um homem solitário, meio estranho paranormal, aspecto de Nosferatu. esse cidadão revelou-se, no mais adiantado da hora, ser o melhor jogador de sinuca dali. tendo sido ameaçado, apenas, por uma moça de cabelo acobreado, que parecia não saber a mira de sua vida, mas que acertava o alvo das bolas. Jonas não compreendia a poesia de Caio Fernando Abreu falada por uma jovem de cabelos curtos, sorridente, ar de carente, que se afirmava pela voz do poeta, talvez não lhe diziam respeito, não àquela hora da noite, as dores do mundo ou o pequeno vasto mundo daquelas frases... atento mesmo somente à voz de um companheiro seu, que insistia em acompanhar o crooner do bar, com perfomances bizarras para canções preferidas por boêmios - ou bêbado de ocasião – esse o seu estado... Jonas perambulou pelas mesas do bar. encontrou uma portuguesa, menina bonita, acompanhada de um jovem também belo, que fumava e falava muito com sotaque marcado, ele não reconhecia seu próprio idioma . “como? o que ela disse?”, sem tradutor, desistiu da conversa. em outra mesa ouviu por cinco minutos uma discussão política que lhe causou tédio momentâneo. levantou-se e postou-se no balcão do bar, a janela que se comunica com a cozinha. o melhor posto de observação do lugar. são três horas e seus freqüentadores chegam. gente e fumaça de cigarro inflamam o ambiente, logo forma-se uma fila para disputar com Nosferatu as partidas de sinuca. Jonas pensa “e se eu esquecer o texto que tenho que dizer pros clientes? sim, isso pode acontecer, estou nesse estado e cedo vou me posicionar no PA...”. repassou as frases que repete, em média cento e cinqüenta vezes por dia ao telefone, mas mesmo assim poderia errar, ele sabia disso. parou o texto quando aportaram seis garotas. sentaram-se, pediram cerveja e depois de dez minutos, em grupo de duas, entravam no banheiro. voltavam felizes, sorrindo, e a conversa delas animava o bar. queria ser o pachá daquele harém, ah se queria. trocou olhares e sorrisos com as moças. imaginava de qual planeta desceram aquelas mulheres, de roupas e maquiagem escuras, cabelos desalinhados, pareciam saídas de uma revista de moda. a mais bela das moças, segundo julgamento de Jonas, cruzou seu olhar com o dele. ela deteve-se, ele olhou pro lado para não restar dúvida. era verdade, ela mesma encarava seus olhos amendoados. linda, maravilhosa com aquele cigarro na mão, a pele branca porcelana contrastava com seus cabelos negros de mechas lilás, batom escuro, um piercing na sobrancelha, Jonas foi ao paraíso através de seus olhos. pensou como era diferente de sua namorada, Brenda, sempre de argolas enormes nas orelhas, saltos altíssimos, mini-saias e o cabelo de chapinha japonesa. a moça segue ao banheiro e Jonas acompanha a partida de sinuca entre o Nosferatu e a mulher, os perdedores também estavam absortos nos lances, silenciosos. Daí que a moça saiu do banheiro e postou-se a seu lado. ele não a percebeu até ouvir sua voz: “que tal você sentar com a gente?” perguntou a guapa. recuperado do susto, Jonas não hesitou e lá estava em seu harém... a partir daí, nenhum motivo o desviaria da mesa. um olhar em direção à seus amigos seria a senha para a aproximação de qualquer um deles, isso quedaria fatal. o Eduardo, aqui, seria demolidor, qualquer conversa sua seduz até mesmo uma estátua de pedra. não, ele não iria sabotar a sorte grande. uma das moças pediu a conta. e sua amiga, sim ele já a considerava sua amiga, convidou-o para sair do bar com elas. às cinco da manhã Jonas seguiria com as moças, sem querer saber qual destino, apenas um aceno para os colegas... já numa estrada se escutava a música... jamais tinha ido a uma rave, fato inconfessável. aquela batida e som altos afetavam seu espírito. ingeriu uma pastilha branca e bebeu e fumou e gargalhou e dançou... neste instante, Jonas está deitado num quarto escuro, o texto do telemarketing deletado, em definitivo, de sua mente, o corpo em tiras e seu mundinho suburbano em demolição.

domingo, 26 de novembro de 2006

Chuva de meteoros

Van Gogh, the hills of paradise

o dia amanhece, luzes amarelas, parece uma pintura de Van Gogh - que afirmou ser o amarelo a cor do nascimento e da loucura. “não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, não há visões, nada de alucinações. é a verdade tórrida de um sol das duas da tarde.” disse Antonin Artaud, pouco antes de morrer. aqui, o dia ainda amanhece, e percorro os raios amarelos do sol cercados por nuvens. sim, aqui há visões, alucinações, vertigens, um universo em transe ainda às cinco horas da manhã, quando a verdade não é tão abrasadora. o olho se perde nessa imensidão do céu e se trai, criando imagens que se movem e rapidamente são abatidas pelo vento. mais etéreo, só os sentidos. vejo bichos e gente, algumas estátuas gregas. entre pássaros, uma nuvem faz lembrar tua imagem, os cabelos em cachos dourados, um anjo medieval... e logo um cheiro de doce sabor contamina o ar e me transporta pro teu espaço infinito, teu casco de caracol, teus extremos. lembro das alegorias em Hamlet - uma tragédia, que refere-se também aos modelos cósmicos que se debatiam no século XVI - de um lado, o pensamento visionário, que aprisionava a humanidade: "Oh! Deus. Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito" - e do outro, idéias que tornavam livre a humanidade para o universo: "Há mais coisa entre o céu e a Terra, Horácio, do que pode sonhar a tua filosofia". teu lugar é essa morada de fantasmas saídos do século de Hamlet, uma Dinamarca, e também espaço sem fim, de onde murmuras memórias, vomitas dores, desestabilizas as certezas, com tal força e acidez que faz da noite uma longa jornada, intrépida chuva de meteoros, que me tocam gravemente, nesse amanhecer amarelo, feito de rastros de luz deixados para trás.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

"¡que viva la ciencia, que viva la poesia!"

nesse domingo, quando parei para escutar o disco 12 segundos de oscuridad, de Jorge Drexler, lembrei de três passagens pelo Mercat de les Flors . a primeira, quando assisti (acho que a palavra não é bem essa) o espetáculo Manes da Companhia de teatro La Fura dels Baus, de onde saí atormentada e suja (literalmente), e depois, a leitura livre que eles fizeram do Fausto de Goethe: F@austo versión 3.0. adrenalina que jamais experimentei em uma apresentação de teatro. mas de La Fura não sou eu quem vai dizer do seu vanguardismo. a outra, mais delicada, o show Llueve de Jorge Drexler, quando fomos porque você insistiu em nos apresentar o tal cantor/compositor/instrumentista e (médico) uruguayo. do show aprendi o refrão de “no pienses de más”, a mais poética desse disco, é verdade. desde então, nutro absoluta paixão por Jorge Drexler. graças a você, quem aqui se fez presente nessa primeira escuta de 12 segundo de oscuridad, num dia opressor de tão quente, na cidade de Fortaleza. Acho que você sabe que Drexler atravessou o Brasil, com a música tema de Diários de Motocicleta, (vai retrucar dizendo que viu o filme no multiplex perto da tua casa)... tenho arquivadas algumas das canções dele, quase todas, revelo. inclusive aquelas em dueto com Jarabe de Palo . gosto das suas canções (ele faz da música pop algo sofisticado) e em especial gosto de sua poesia... bacana esse diálogo de Jorge Drexler com o Brasil (agora também através dele me reaproximo de você) em 12 segundos de oscuridad. as participações de Paulinho Moska, Maria Rita e Arnaldo Antunes são geniais; mas me emocionou mesmo a versão com violão de “High abd dry”, de Radiohead. esse cd é melancólico demais..., sabe e parece que gosto disso, sua temperatura pode nos levar a uma abstração do mundo, combina com a oscuridad momentânea de hoje, talvez essa a razão também de te escrever. saudades!

http://www.youtube.com/watch?v=82MMYpbC6RA

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Ad Infinitum

"esta crônica é prá você, oh meu amor..."

submergimos em conversas. num bar que não lembro o nome, plantado numa esquina. chegamos o lugar ainda vazio. um garçom, numa das mesas, lia um livro e exibia uma tatuagem que me encantou e você nem ligou. uma garçonete agradável nos atendeu. pedimos uma cerveja, seu gosto, meio amargo, me traz sempre lembranças bem felizes... e também me passa o filme de comerciais da marca: um deles, uma história de um vampiro que prefere o líquido de uma long neck ao sangue de sua vítima; um outro, o lobo mal que não come a vovozinha e bebe todas as latinhas que estavam na geladeira da indefesa velhinha... cada comercial, em preto e branco, trazia em cores a garrafa verde e seu conteúdo surgia como a seiva da vida. esse era, pois, o mesmo elixir que tomamos naquela noite, quando celebramos a vida, em companhia de uma tela de plasma que exibia clipes. pensei: melhor que voz e violão... enquanto as músicas se sucediam e distraiam olhos e ouvidos, íamos conversando sobre nós, mais você sobre você, dizendo coisas que têm a maior importância, banalizadas entre comentários sobre a trilha do bar. elegíamos afinidades: chico, caetano, cazuza, fred mercury, cássia eller, o rappa, los hermanos.... toni garrido eu gosto, você não. djavan, eu detesto, incondicionalmente e você faz concessões, vê beleza em "Se".!!! então tá, me diz... qual maior estupidez escrita/cantada que a rima: “São Jorge por favor me empresta o dragão/mais fácil aprender japonês em braile/do que você decidir se dá ou não”? ah! isso não combina nada com teus sinais de delicadeza, como quando me apresentou Ana Cristina César. “frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que não é mudez”... naquela altura os habitantes do bar se anunciavam. ali uma tribo demarca seu território, eles fumam e se vestem com ilusória exclusividade... talvez venham ouvir aquela seleção de músicas, nada inusitada... dispersão, a cerveja já mostrava seu poder de extermínio. hora de deter o estrago anunciado. a seguir, a alma incauta, proferiria sentenças veladas no resto da noite. a ressaca, sem tamanho, seria mitigada apenas, sim, apenas por outra poesia, dita ao telefone, que provocou, afinal, o desejado sono intenso do outro dia. acordei, somente, quando li a minuta de amor e vi minha cara estampada numa pintura impressionista, refletindo sobre esses e outros estilhaços que nos carregam ad infinitum ...

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Paul Celan

Marc Chagal, le promenade


Distâncias

Olho no olho, no frio,

deixa-nos também começar assim:

juntos

deixa-nos respirar o véu

que nos esconde um do outro,

quando a noite se dispõe a medir

o que ainda falta chegar

de cada forma que ela toma

para cada forma

que ela a nós dois emprestou.

( Paul Celan. trad.: Claudia Cavalcanti )

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Livros

[ le reploiment vierge du livre, encore,
prête à un sacrifice dont saigna la tranche
rouge des anciens tomes ;
l´introduction d´une arme, ou coupe-papier,
pour établir la prise de possession.
Stéphane Mallarmé. ]

hoje fui na siciliano ver livros. delicioso ritual. sempre lembro Walter Benjamin que compara livros e putas. : “ao ver livros e putas ninguém diz que os minutos lhes são precisosos. mas quem se deixa envolver mais de perto com eles, só então nota como têm pressa.” na livraria sempre passo horas olhando capas, folheando, às vezes sinto o aroma..., outras leio as orelhas, prá ver se interessa. um modo meio escolástico de passar pelas prateleiras...sem distinção, pego livros ao acaso e me detenho... raramente livros de sociologia ou política (ato falho?) e mais livros sobre cinema, poesias, infantis, romances – neles, o maior tempo, as vezes de culinária, olhando as imagens dos pratos, nunca lendo as receitas. sempre levo um livro prá casa. e depois para a cama. “livros e putas podem se levar para a cama”. da última vez, dali mesmo, saí com uma edição, em inglês, de uma obra de Lewis Caroll. para minha Ursula, pequena leitora... hoje era diferente, fui direto à estante aonde estavam os livros do Paul Auster, queria um, em especial, cujo título é belo: achei que meu pai fosse deus... e estava lá me esperando, eu acreditei! depois retirei um romance de outro autor... li comentários da crítica literária na contra-capa. “livros e putas – cada um deles tem sua espécie de homens que vivem deles e os atormentam. os livros, os críticos”... saí com dois livros e a urgência de devorá-los no fim de semana....afinal, “livros e putas entrecruzam o tempo. dominam a noite como o dia e o dia como a noite.”

citações de Rua de Mão Única, de Walter Benjamin.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

České Velenice

o nome de uma cidade. vi num documentário, que peguei já no final, quando se falava dos problemas de sua população. situada no leste europeu, na República Tcheca, fronteira com Gmünd, na Áustria. uma distancia de vizinhos: de České Velenice se enxerga Gmünd. num percurso de 10 minutos a pé e já se está em outro país. o documentário falava de seus habitantes: tchecos, claro, e refugiados que ali aportaram, principalmente vietnamitas. falava também da interação entre eles, pelo esporte... o documentário me atiçou a curiosidade. mais tarde, na internet, busquei informações sobre a cidade. mas quase nada em língua portuguesa, excessão para um diário de um turista paulistano, que pernoitou por lá, e registrou seu encantamento com a cama king size do hotel 4 estrelas e o módico preço do táxi que pagou do hotel à estação de trem. aqui, bem longe de České Velenice, está o meu desejo de caminhar numa outra planície, aonde nada lembre a paisagem, a fala, os rostos, a brisa local, e também dormir numa cama com outro cheiro. me deitar e esquecer o dia de hoje.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Stand by

ou crônica de um dia de eleição
domingo, 29 de outubro. bem cedo vejo apressadamente um jornal, navego também por outras mídias, uma revista, um blog jornalístico. como Caetano, pergunto, “quem lê tanta notícia?” hoje é dia de eleição lembram as manchetes dos meios. a seguir faço o caminho da casa de minha mãe, e logo, uma parada obrigatória na sessão eleitoral. votar e almoçar: necessidades básicas. enquanto espero a hora de teclar, observo o movimento dos eleitores. essa cidade é vermelha, concluo. sol quente aquece mais o dia de votação. penso sobre a política. recordo um filósofo que disse, lucidamente, que precisamos repolitizar a esfera política e fazer o mundo mais humano. uma outra caminhada a se fazer. me parece urgente e bem mais longa. vou sim, repolitizar minha vida, minhas ações no mundo. decisão irrevogável. e entre especulações sobre o menu do almoço de domingo, tento me organizar. primeiro, saber dos fundamentos da política. começar, claro, pelo básico: A República(Platão) Do Contrato Social, (Rousseau) depois o fundamental, Democracia na América (Tocqueville), o Manifesto Comunista, (Marx) - melhor a edição em quadrinhos, leitura rápida e mais prazerosa - finalizar com a importância da política como ação, como processo, A Condição Humana (Hannah Arendt). ler, reler, rever posições. revolver! depois pegar a arma, digo, o verbo: discutir, contaminar os espaços com o firme discurso. e também tomar posições, atitudes...
tenho o pressentimento que essa seleção será derrotada pelos livros de poesia, os romances que me esperam enfileirados, sempre existem bons livros em stand by , e os filmes, e a praia, imprescindíveis à felicidade e o trabalho e os fazeres domésticos, tudo o que consome a existência. então, como inserir a política nessa agenda? qual mágica me transformará num ser consciente, politicamente correto, com ideologia definida, me situando estrategicamente? não posso mais fazer parte dessa horda de cooperados involuntários despolitizados. a aspiração de humanizar o mundo me mobiliza, nesse dia de eleição. melhor então fazer uma faxina do essencial e do supérfluo nessa agenda. então, combinado, fica prá depois do Carnaval, essa leitura obrigatória e a ação conseqüente (teoria+prática).mas antes tenho que contribuir com a democracia, votar. fortalecer nossa frágil democracia que ainda em sua infância, prescinde da via eleitoral....
então, será simples, teclar o número cabalístico, 13. e esperar, em estado de alerta, a virada do ano. novembro vem aí, depois natal, reveillon e já já é Carnaval. então, ano novo, práxis política nova, pois, por enquanto, certamente o melhor do dia será me deliciar na cozinha de mi madre.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Deus do vento

Uma sala de aula, às vezes soam provocações, Davi X Golias; ou relatos cotidianos sucumbem à intelecção; ou o tédio arremata a criação; ou ilações não são percebidas e quando são, melhor não traduzir. às 7:30, de uma sexta-feira, quais as chances de se fazer inteligível, de se perceber num olhar uma escuta sensível, diante uma manifesta apatia geral, causada pela ressaca ou noite mal-dormida do ontem? "suporte, oh baby, suporte", o esforço da suprema abstração é nulidade. o grau zero do conhecimento também se observa numa noite de quinta-feira, quando as vontades soluçam, e o limite entre o não querer saber e o querer fazer algo cede a uma palavra, uma somente, mínima. ou a um ato. basta olhar a porta que divide o mundo suspendido na sala de aula do corredor – para além de um lugar de trânsito, é aonde a vida começa a pulsar. simples assim, assim mesmo, basta abrir a porta, a “fenda para o mundo”. numa quinta, com esse estado de ânimo demolidor, como falar das categorias analíticas de Durkheim? como vencer o ar abatido de um aluno, que de moto táxi atravessou a cidade, da Maraponga à Praia do Futuro, a mente ocupada com as vírgulas e pontos, os desafios da língua pátria, que o faria vencedor na prova do horário AB, rabiscada, no mesmo ritmo da moto que o zipou até ali ? maior esforço a seguir teria ele que enfrentar, aula de sociologia. nem diversão, nem arte garantidas, ainda as teses do século XIX. o cara que venceu o século XX e chegou ali quase morto, numa yamaha, imaginava o que seria um kamikaze, no exemplo citado sobre os tipos de suicido. um ninja, uma mitshubichi, um samurai, vá lá, dá pra entender, mas quais os movimentos, cores, as roupas desse desconhecido herói japonês? ele mesmo, o garoto de olhos vermelhos, seria esse deus do vento, afinal, os kilômetros percorridos em velocidade máxima, valeria essa conversa bizarra em pleno novo milênio? não seria esse um ataque suicida?

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

O mar


mar

presença ondulada do infinito retorno incessante

da paixão frigidíssima violenta indolência

sempre longínqua sempre ausente

catedral profunda que desmoronando-se permanece!


(António Ramos Rosa, Lisboa, 1990)

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

A barra e a praia

domingo na praia do futuro velha - e o mar ali, grandioso, norte, calmaria... preciso tomar uma atitude. quero dizer, entrar na água. revejo o filme dos dias recém passados enquanto contemplo a paisagem e as pessoas que me atravessam. saboroso hábito. vejo chegar um grupo de romeiros, de certo vêem de Canindé. na sua maioria mulheres, vestidas de marrom, ocupam uma mesa numa barraca, dez metros de onde estava. três delas dirigem-se ao mar. uma senhora de sutiã bege e bermuda nos joelhos. outra, mais velha de vestido marrom. e a terceira, mais nova, de biquíni azul. as três seguem, de braços dados em direção ao mar. penso no cinema de sexta-feira. aquele não é definitivamente o filme sobre Wittgenstein. e o sabadão que passei na Barra, o que foi aquilo, mon Dieu? uma aventura, sim. passei seis horas, entre camarins e o palco, seguindo as gravações do programa de televisão. lembro do dândiDaniel Peixoto, esquentando a platéia com sua funk/eletro/punk/trash incendiária “Vai Daiane, vai Daniele!!!”. fiquei curiosa com o hip hop caliente do Costa a Costa... vi o público delirar com a entrada de uma banda de forró e um trecho daquela letra cantarolada pela multidão não sai da memória: “eu faço tudo por você/ponho um anúncio na tv/mostro meu coracão pra todo mundo ver”. os bailarinos, de coreografia indescritível, jogando calcinhas pretas à platéia ensandecida. essa imagem se apaga quando vejo as três mulheres subindo do mar, molhadas e sujas de areia. lindas, elas, à vontade naquele espaço que não lhes pertence. aonde transitam sem distinção, e fazem suas devoções. leio o sinal e afundo ...

domingo, 22 de outubro de 2006

Cultura e mercado



As transformações experimentadas desde o final do século XX, em nossas sociedades, tornam-se um desafio para gestores culturais pois, à elaboração de políticas públicas mais incisivas nesse campo, deve-se observar, por um lado, a presença e a permanência de valores culturais locais, o diálogo entre culturas, as distinções do que se produz, circula e consome nas relações cotidianas por indivíduos e grupos e, por outro, a cultura como fenômeno de mercado, que move empresas e grupos multimídias, que fazem circular conteúdos, disseminando padrões culturais globalizantes (as indústrias culturais) .
Os movimentos de integração regional e as reivindicações de expressão das diversas culturas explicam, em parte, o novo interesse pela cultura, soma-se a isso, o fato que as indústrias culturais modificam, assustadoramente, os modos tradicionais de criação e difusão da cultura e provocam importantes mudanças nas práticas culturais. A indústria cultural, informa a Organização das Nações Unidas (ONU), é responsável, hoje, por cerca de 9% das riquezas produzidas no mundo (o produto Interno Bruto, ou PIB). Impulsionada pelo conjunto de empresas e instituições com atividade econômica voltadas à produção de conteúdos culturais, cujos fins de seus suportes, difundidos por meios como a televisão, o rádio, o cinema, o vídeo, a internet, fogem à lógica da simples compra e venda de mercadorias. De maneira vertiginosa as novas tecnologias, baseada na rede mundial, reduzem custos comerciais e revolucionam a natureza dos bens e serviços que utilizamos e consumimos.
O comércio de bens culturais cresceu cinco vezes entre 1980-1998 e se caracteriza por novos padrões de produção e consumo, com forte tendência global das mercados culturais. Analisando 120 economias, a Unesco (2005) constatou que apenas três países, o Reino Unido, os Estados Unidos e a China, produzem 40% dos bens culturais negociados no planeta. As vendas da América Latina e da África, somadas, não chegam a 4%. Nesse quadro, é bom ressaltar que a globalização representa um enfrentamento a diversidade, pois tendem a uniformização e empobrecimento da oferta cultural. (...) “Nesse sentido, a cultura é, ao mesmo tempo um instrumento de paz e conciliação, como tambem um poderoso fator de desenvolvimento, que pode inclusive traçar o caminho para um futuro planetário compartilhado”.
Se por um lado o consumo cultural se expande por todo o mundo e sua produção tende a se concentrar nas mãos de grupos, por outro, países, estados, cidades de todo o planeta, assumem o desafio de implementar políticas que detenham a “máquina de produzir desejos”, o poder de distribuição dos grupos dominantes no mercado do “entretenimento”, criando alternativas de fomento às produções locais, através de iniciativas econômicas, tecnológicas e culturais.
A comunidade européia adota desde 1980, quando identifica o atraso de seus países em relação aos Estados Unidos, políticas de criação de um mercado comum de radiodifusão; resoluções relativas ao desenvolvimento de uma indústria de programas de TV; combate a pirataria audiovisual definindo os modos de difusão de obras cinematográficas por parte dos meios de comunicação; em 1985, anuncia ações destinadas a abrir o mercado do audiovisual à concorrência, promovendo o cinema e a televisão européia, tornando-a mais competitiva. Na França, por exemplo, 40% das músicas executadas no rádio têm de ser em idioma francês. O governo subsidia a produção de filmes nacionais para a televisão e desde 1983 o Instituto para o Financiamento do Cinema e das Indústrias Culturais oferece garantias de 50% a 70% do valor dos empréstimos concedidos pelos bancos aos empreendimentos do setor. O volume de vendas saltou de 1,5 milhão de CDs em 1992 para mais de 39 milhões em 2000.
O Canadá, que possui um programa nacional de educação para a mídia, em 1980 criou a lei que permite a liberação de verbas para programas de formação, de abertura de empresas e de criação de empregos no setor audiovisual. Em 1993, treze anos depois, a partir de estudo sobre os seus resultados, constatou-se que cada dólar aplicado em atividades relacionadas à cultura gera 3,2 dólares na atividade econômica como um todo. Hoje, o Conselho da Cidade de Toronto informa que somente no município existem 190 mil pessoas (14% da força de trabalho) atuando na área cultural em empresas que faturam cerca de 9 bilhões de dólares por ano.
Na Argentina, 10% do faturamento dos cinemas, 10% das locadoras de vídeos e impostos pagos pela publicidade em geral são recolhidos por uma autarquia para subsidiar a produção nacional de filmes. Em 2003, em plena crise econômica, o país produziu 50 longas-metragens, o dobro da média registrada entre 1980 e 1990.
Segundo dados do IBGE (2003) a atividade audiovisual no Brasil correspondia, em 2001 a uma receita operacional líquida de 11,235 bilhões de reais. O mapa da receita do audiovisual ainda revela a seguinte distribuição percentual: São Paulo, 53%; Rio, 20%; Sul 10%; Nordeste 6%.
Para estimular a produção brasileira do setor do audiovisual, “estabelecendo uma base territorial de criação/produção/difusão, uma efetiva rede inclusiva de novos protagonistas regionais”, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (2003-2006) adota uma política permanente de fomento (editais) à produção de filmes e vídeos de todos os gêneros, a produção de jogos eletrônicos; produção de conteúdos televisivos e a política de regionalização do audiovisual, a partir da instalação de núcleos de produção digital em diversos estados brasileiros. No que se refere à distribuição, acrescente-se os projetos de ação política externa, tendo o Brasil numa situação de protagonista, voltadas a ampliação dos laços comerciais e culturais no Mercosul e Ibero-América. E, nos últimos dois anos, a proposta de regulamentação do setor, a Ancinav, que sistematizou a elaboração de uma Lei Geral das Comunicações e ampliação da Agência Nacional de Cinema - Ancine para um organismo abrangente, que inclui todo o espectro audiovisual em suas atribuições de fomento, fiscalização e regulação.
No Estado do Ceará, entre os anos de 1993 a 1998, foi dado inicio um projeto de políticas públicas para o desenvolvimento do setor audiovisual no estado, através da Secretaria de Cultura e Desporto (SECULT). Uma política cultural pensada a partir de um programa que incluía informação/formação, criação/produção e difusão. O Ceará se posicionava nessa área estratégica e criava as bases de desenvolvimento de uma indústria audiovisual regional/local. Assim foram criados: uma escola de artes - o Instituto Dragão do Mar de Artes e Indústria Audiovisual, a lei de renúncia fiscal para financiamento de projetos culturais (Lei Jereissati); o Bureau de Cinema e Vídeo do Ceará para a articulação das produções audiovisuais locais no âmbito nacional e internacional; a política de editais; além de ações complementares como o apoio aos festivais e cineclubes. Um desafio iniciar um programa de ação de interferência cultural inédita, pois sua concepção, ao mesmo tempo em que rompia a lógica clientelista das políticas culturais do estado, propunha-se um programa de inclusão que visava qualificar qualquer cidadão interessado em desenvolver alguma habilidade no setor do audiovisual, em todo o estado do Ceará.
Os anos seguintes foram um marco na política audiovisual do Ceará, pelo que destruíram. De 1999 a 2006 os gestores da Secretaria de Cultura do Estado passam a considerar a atividade audiovisual como em fase de extinção. Poderia ter se superado as fragilidades da política anterior, ampliado e analisado, através de estudos sobre os resultados obtidos, saber das mudanças ocorridas no setor audiovisual, entre outras ações. A opção, no entanto, foi pelo desmantelamento de sua estrutura, fechando o Bureau de Cinema e Vídeo e a escola, o Instituto Dragão do Mar.
Hoje a política de audiovisual resume-se aos editais de cinema e vídeo promovidos pela SECULT, como política compensatória, uma forma de se acalentar realizadores e seus projetos adormecidos e a tentativa de re-estruturar o Bureau de Cinema e Vídeo.
A Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (FUNCET) (2006-2009) - ainda devedora de um Plano Cultural para a cidade – rabisca sua política de audiovisual, em sintonia com os programas da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, reproduz modelos existentes - política de editais, criação de núcleo de produção digital e reedita uma escola de audiovisual nos moldes do Instituto Dragão do Mar. Acena para a criação de uma TV popular, importante ação hoje, quando vivemos um processo de discussão sobre a regulação nas telecomunicações e seus conteúdos. Mesmo com a posição difícil na concorrência com a televisão comercial, pode-se efetivamente construir alternativas de programação mais adequadas às necessidades de desenvolvimento local, independente, experimental, diversificada, mais próxima do mundo da vida das populações locais, mais adaptados às culturas populares etc.
Observando as orientações das políticas públicas do Ceará, nota-se que faz falta ainda um enfrentamento direto dessa interface da cultura com o mercado (talvez começar com uma cartografia socioeconômica desse universo – o que se sabe, por exemplo, sobre a indústria do forró ou do mercado da música instrumental?) pois, se é certo dizer que os bens e serviços culturais constroem e transmitem valores, produzem e reproduzem identidades culturais, também são fatores livres de produção e fruição nessa nova ordem mundial.

oooooOOOOOooooo

sábado, 21 de outubro de 2006

Zapping


sexta-feira, 23:00h. tenho que estar no aeroporto meia noite. faço a lista do fim de semana. sábado: ir na feira de artes do colégio das meninas. Ursula acha um tédio. Marina quer ir ver o 14 bis de papelão; show do Central no pólo de lazer da Barra. combinei com a produção.13:00h. acho que não vou encarar. melhor ver depois de editado, na televisão; levar o carro prá revisão de 10mil km. saco. carro & oficina definitivamente tarefa pro sexo forte; ... abro a geladeira sem motivo. volto. ainda faço planos. domingo: praia e cinema com as meninas; ver as notícias do mundo; reler um texto prá disciplina Teoria da imagem; dormir cedo. odeio segundas... ligo pra checar se o avião chegará na hora prevista. atrasou. só às 02:45 horas. fazer o quê? ponho o despertador 02:30h. em dez minutos chego no Pinto Martins. saio do Pc e ligo a televisão no sleep... zapping. de cara, uma receita de spaguetti com camarões e lulas. deu fome. vou na cozinha. decepção total, depois das imagens suculentas do spaguetti. volto à tv. Coragem, o cão covarde. desenho animado de um triste e velho cão em situações bizarras. passo. agora um documentário sobre mães, pais e filhos. conciliações entre o mundo adulto X infantil. passo, desse conflito meu depoimento já basta. o jornalista diz que a Coréia do Norte, aconselhada pela China, não vai fazer o anunciado segundo teste nuclear. êba! o mundo não vai ser detonado hoje... nem amanhã pelo visto. desligo a tv. viro prá um lado, outro, não consigo dormir. então volto, de canal em canal, editando imagens... paro num filme com Antonio Bandeiras que se passa. canastrão. sem chance. melhor rever 21 gramas, tá pela metade do filme. soco no fígado. já sofri uma vez com essa película. desisto. volto ao noticiário. Cnn em español. "prensa rosa", bom. novidade da vida de folhetim da pop star Madonna. ela quer adotar uma criança africana e gera polêmica. adotaria também um, ou dois. passo. Jack Johnson na Mtv agrada meu lado pop, zen-surfista. vejo o clip até o fim; vou pro Pc, escrever esse diário. agora são 1:45 e releio essas obviedades. melhor ir logo pro aeroporto. um café e depois folhear livros e revistas na La Selva, isso cai bem.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Wittgenstein e Freud



sexta-feira. dia de usar branco. cinema à vista. vou ver Wittgenstein na tela grande. Já li que o filme sobre o autor de Tractatus Lógico-Philosophicus é fake. aborda mais o despertar da homossexualidade do pensador que sua não vã filosofia. a ver. ademais, tenho encontro marcado na agenda das sextas, o divã. alguém, do alto de sua sabedoria, cuida de meu juízo. nobríssima ocupação a dos analistas. não podia buscar outra orientação senão num filiado às teses de Freud. o pai da psicanálise buscou explicar a vida pessoal e individual, mas também pública e social dos homens recorrendo às tendências sexuais, a libido. e entender também as grandes manifestações da psique como resultados do conflito entre as tendências sexuais ou libido e as fórmulas morais e limitações sociais impostas ao indivíduo. conflitos que produzem sonhos, as expressões deformadas ou simbólicas de desejos reprimidos, os atos falhos ou lapsos, distrações falsamente atribuídas ao acaso, mas que remetem ou desvendam aqueles mesmos desejos. diz Freud, ainda, que a transferência da libido para outros objetos de natureza não sexual, a sublimação, gera fenômenos como a arte ou a religião. Ok, Freud, você sempre vence. busco mesmo saber qual minha propensão nesses territórios. acho que vai demorar minha alta. pois entre outras coisas que desconheço inteiramente, é certo que transito em níveis elevados de distração compulsiva.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Decifrando rituais



Barra do Ceará, sol brabo, domingo de praia. chegamos ao pólo de lazer. o cenário lembra uma comemoração. ônibus e topics param e vemos descer pessoas em grupos, caravanas. combinação de praia e cachaça. bares e restaurantes à beira-mar, música alta, apinhados de gente exalando cheiro de sol e bronzeador. o peixe frito espirra óleo. algumas moças espalham uma pasta branca sobre a pele, o banho de sol sobre o banho de lua, funciona como um acelerador solar. pessoas mergulham na água, crianças brincam, sujas de água e areia, a milanesa, pequenas embarcações transitam com passageiros. depois de uma hora de flânerie numa mesa debaixo de um pé de castanhola, duas águas de côco, e alguns churrascos de carne de terceira, seguimos o percurso. uma duna invade o asfalto. do alto da duna explorada, a paisagem: mais longe, a praia das Goibeiras, o olhar alcança as águas sob a arquitetura da ponte que separa Fortaleza de Icaraí, esse o espetáculo do encontro do rio Ceará com o Atlântico, e do encontro dos banhistas, em hora de lazer. voltamos à pista da avenida principal. agora, de costas para o mar, desvendamos os lugares de moradia do povo dali, casas, barracos. uma partida de futebol dos meninos na rua foi interrompida para o carro passar. seguimos um beco e logo de volta à avenida, clicamos as fachadas dos motéis baratos da barra. entre vários, motel luki, motel 3 ♥♥♥, the best motel, ka samba motel, dunas motel – o prazer pertinho do mar, seu slogan. o preço, afixado no muro: pernoite R$ 15,00, permanência R$ 6,00. outro ingrediente move aquela gente, e de resto, o resto da humanidade, o sexo. Ah... o domingo feito de praia, cachaça e sexo, o código do povo alegre dessa orelha do mundo, aonde proliferam os ritos sensuais e a espécie humana.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Estado de praia


18/10, quarta-feira, dia útil, acordo em estado de praia. apago o chek list da memória, pego protetor solar e toalha e penso na bomba de urânio da Coréia do Norte, antes do mundo explodir, preciso escutar summertime com Miles Davis e Gil Evans. play e sigo a pista que vai dar na praia do futuro. acelero, permito, enquanto toca a música boa mesmo. encosto o carro e o personal vigilante me aborda, cuida aí vai. enfim o mar... depois de moroso banho, trucido alguns caranguejos em companhia de uma gelada enquanto observo o ambiente: credo, aqui parece Ibiza, cheia de italianos e espanhóis; a diferença é que tem moças morenas, cafuzas, por todo lado, acompanhadas dos branquelos. tem um do meu lado com cara de demente, dever pintar paredes na Itália, o outro lá parece um motoboy assassino. ando muito suja mesmo, e penso que esse turismo sexual seja talvez uma boa para a mescla de raças... talvez melhor que contemplar o triste olhar de crianças mestiças captadas por fotógrafos sensíveis a miséria. então tá, o turismo sexual também vai ajudar a redistribuição de renda. desemprego pros fotógrafos e pras causas sociais politicamente corretas. bobagens gravitam a mente... melhor voltar ao mar. a temperatura me faz lembrar que evitava a água do mediterrâneo, bastava contemplar o azul profundo do mar, que enche a vista e acalma o espírito... mergulho no verde mar atlântico, e em meus pensamentos mornos e desordenados...

terça-feira, 17 de outubro de 2006

sábado, 2 de setembro de 2006

Uma poesia + uma resenha

Ted Hughes

Dos árboles en Top Whitens

"Expuestos a la luz infinita, pastores del viento hacen sonar las cañas de la desolación,
arrancados de la fragua brotaron y crecieron después de cualquier modo, fue Dios y lo sabían.
Los montes ahora los sustentan de visiones entre un vacío y otro más brillante, con música y silencio. Inquieta la gente alza sus cabezas de oveja, después siguen comiendo. "

Ted Hughes (Inglaterra, 1930-1999)
Poeta e escritor. Seus poemas as vezes expresam emoções violentas.

Sua poesía é física, de um tom quase feroz.
Escreveu também obras de teatro, poemas e contos para crianças.
Hughes foi casado com a poeta americana Sylvia Plath.

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DOGVILLE

Uma fábula da condição humana

Um prólogo e nove capítulos contam uma história ambientada numa pequena cidade americana nos anos trinta. Dogville, que parece não ser lugar algum, mas um modelo atemporal de sociedade, como outra qualquer: submetida às regras dos homens. Seus habitantes, velhos conhecidos, vizinhos, cidadãos honrados, nos desvendam os códigos e os sentidos do existir. Uma ficção que nos provoca saber da condição humana – esta a essência do enredo de Dogville, oitavo filme do dinamarquês Lars Von Trier.
A cidade, desenhada esquematicamente num chão preto, ocupa o espaço de um palco retangular, como no teatro. Marcas de giz delimitam ruas e jardins da vila que está situada próximo de rochosas montanhas. Não há portas nem janelas em Dogville, mas seus moradores se movem como se elas existissem e escutamos o abrir-fechar de trincos e o ranger de dobradiças. O fundo é branco para o dia. Quando é noite, preto. Esta a demarcação espacial de Dogville, dos passos e das profusas atitudes de seus moradores - o espírito que exala aquela cidade. É precisamente o mínimo espaço que possibilita ver integrado em um único e diverso lugar todas as temporalidades, todos os personagens, todos os acontecimentos, numa rigorosa concentração dramática.
Na pacata cidade surge do nada Grace (Nicole Kidman), uma jovem, de fina estampa, que foge de gângsteres. Não sabemos o que foi sua vida, relações ou lugares, antes de Dogville. Acolhida por Tom (Paul Bettany), que a convence permanecer na cidade, caso conquiste seus moradores. Grace se entranha naquela fechada comunidade e em troca da grandeza d'alma de seus moradores, executará ali pequenos serviços. Grace é procurada. Quando se intensifica o cerco à fugitiva, os habitantes se conscientizam do perigo que é oferecer abrigo à jovem, tornando-se assim, avarentos, cobrando um preço mais alto pela proteção à valiosa forasteira. Punida, aprisionada, Grace será escrava das mulheres e puta dos homens de Dogville. Ao tentar escapar será delatada pelo único morador que parecia manter algum traço de força moral, quem primeiramente lhe aceitou.
Dogville, uma grande obra do cinema novo europeu, nos deixa sua marca, quase como uma cicatriz. De seu estranhamento inicial, da intensidade do texto, segue a narrativa gerando no espectador um mergulho sobre (des) confiança, semelhanças e diferenças, valores, opressão, poder, violência e escolhas.
Para além da crítica a estética do cinema de efeitos especiais, de linguagem de clipes ou dos doces dramas protagnizados por estrelas americanas, ou da inovação dos diálogos entre o cinema, a literatura e o teatro, a fascinação de Dogville, ou a invenção de Lars Von Trier, está no desígnio de nos sensibilizar para as ambigüidades da vida expressa na ética da ação, traçada numa daquelas geniais formas de se contar uma fábula. Do trágico espetáculo, de contorno humanamente possível, a trama consegue atingir o infinito da alma.
Lars Von Trier mostra - e os diálogos frios de seus personagens atestam - a forma implacável com que a sociedade gera a exploração e a opressão do homem pelo homem, que desencadeia, ao mesmo tempo, um circuito de dominação e de violência.Comprovamos, assim, que a capacidade de construir e devastar é suscitado num mesmo universo onde o amor, como ódio, contamina-se das situações em que o faz germinar, da vontade inequívoca de quem o experimenta.
Há algo de espantoso nesta fábula. Seus personagens, como num genuíno “estado de natureza”, movimentam-se na complexa teia destas significações morais: o que era doce e terno é corrompido pelas mais banais ou essenciais necessidades do ser – em Dogville, presentes no sentido da candura ou brutalidade vivificada em Grace; ou nas pequenas crueldades de uma criança; ou nas bárbaras exigências de seus pacatos moradores; ou mesmo em nós, na provocação que nos alimenta o desejo de ver a face cruel da vingança.
Ao final, fotografias de pobres americanos ao som de americans yongs na voz de David Bowie embalam o espectador que é arrancado de sua condição, e já se encontra na impossibilidade de sair dali incólume, sem pensar sobre o que engrandece e o que torna miserável a própria existência.

"Dogville" Dinamarca / Suíça / Reino Unido / EUA / França / Noruega / Alemanha/ Finlândia / Itália / Japão, 2003. 178 mins. Direção: Lars Von Trier. Com Nicole Kidman, Paul Bettany, John Hurt, Jean Marc-Barr, Chloe Sevigny, Lauren Bacall, Phillip Baker Hall, James Caan. Site oficial: www.dogville.dk/

by Simone Oliveira Lima.