quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A invenção do amor




em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia

um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversas
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo
da monotonia quotidiana

um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
apenas o silêncio
a descoberta
a estranheza de um sorriso natural e inesperado

não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
a rádio já falou
a tv anuncia iminente a captura
a polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo

é preciso encontrá-los antes que seja tarde
antes que o exemplo frutifique
antes que a invenção do amor se processe em cadeia

há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
(...)



Daniel Filipe
in A invenção do amor e outros poemas
Lisboa, Presença, 1972.

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