domingo, 10 de dezembro de 2006

Minha Mãe

by Amy Tam


As palavras mais abomináveis que disse em minha vida para outro ser humano foram para minha mãe. Eu tinha dezesseis anos. Surgiram de meu peito atormentado e as deixei cair como uma fúria de granizo:

- Te odeio, desejava que estivesse morta.

Esperei que se desmoronasse, atingida pela crueldade de minhas palavras, porém ela seguiu de pé e fortalecida, com a maçã do rosto levantada e os lábios estirados num sorriso de louca.

- Muito bem, suponha que morro - disse ela, então já não serei tua mãe.

Tínhamos muitas coisas parecidas. Uma vez tentou se matar de verdade, correndo na rua, sustentando uma faca contra a garganta. Ela também tinha o peito atormentado. E o que lançava em minha direção era rápido e mortal feito raios.
Depois de longas discussões não falava comigo durante dias, me torturava, era como se não sentisse absolutamente nada por mim. Para ela eu estava perdida. E eu perdia uma batalha depois de outra, perdia todas: nas vezes em que me criticava, me humilhava diante de outros, me proibia de fazer isto ou aquilo, sem sequer escutar meus argumentos. Jurei para mim mesma que jamais esqueceria essas injustiças. As guardaria, endureceria meu coração, me faria tão impenetrável como ela.
Recordo isto agora porque também recordo outra ocasião, faz uns dois anos, eu tinha 47 anos e já era uma pessoa distinta, havia me convertido em escritora, em alguém que usa a memória e a imaginação. E precisamente estava escrevendo uma história sobre uma menina e sua mãe quando o telefone tocou.
Era minha mãe, o que me surpreendeu. Alguém teria ajudado ela fazer a ligação? Há três anos tinha começado a perder a memória devido ao Alzheimer. No inicio, esquecia de passar a chave na porta. Depois esqueceu onde vivia. Esqueceu quem eram as pessoas e o que elas significavam. Ultimamente era incapaz de recordar muitas de suas dores e preocupações.

- Amy – disse, e começou a falar rapidamente em chinês – Algo acontece com minha cabeça. Acho que estou ficando louca.

Contive a respiração. Normalmente podia dizer apenas duas palavras seguidas.

- Não te preocupes – comecei a dizer.

- É verdade – prosseguiu. Sinto-me como se não pudesse recordar de muitas coisas. Não me lembro do que fiz ontem. Não me lembro do que aconteceu muito tempo atrás, do que te fiz...

Falava como alguém que estava se afogando e tinha conseguido tirar a cabeça da água, pela força da vontade de viver, e se dava conta que a margem estava muito longe, do quanto era impossível alcançá-la. Falou desesperadamente.

- Sei que fiz algo para te fazer mal.

- Não –disse eu - É sério, não te preocupes.

- Fiz coisas terríveis. Porém agora não me lembro o quê. E apenas quero te dizer isso. Espero que possas esquecer da mesma forma que eu esqueci.

Tentei rir para que ela não percebesse que me partia a voz

– É sério, não te preocupes.

- Certo, só queria que soubesse disso.

Depois de desligar chorei de felicidade e também de tristeza. Voltei a ser uma menina de dezesseis anos, porém a angústia que tinha no peito havia desaparecido.
Minha mãe morreu seis meses depois. Mas antes me deixou as melhores palavras para me curar, tão sinceras e eternas como o extenso céu azul. Juntas sabíamos, em nossos corações, o que devíamos recordar e o que podemos esquecer.

IN: The New Yorker.
dezembro de 2001.

Traduzi de La Insignia

5 comentários:

Anônimo disse...

esta aí é um tapa na cara...

vou fazer um blog também.

beijos my sweet simone

Anônimo disse...

ei, finalmente o blog. comecei suavemente, com uma poesia... depois os escritos mais radicais.
bjos
Fernando

endereço: canetaeveneno.blogspot.com

maria. disse...

pedaços da infância de cada um. e mesmo com um final tão triste, é uma libertação que, pelo menos, eu queria ter. essa sensação deve ainda demorar mais um pouco pra mim de acontecer.

cada um com sua trilha.

beijos, kataoka.

ps - eu tb tenho um blog. nem se compara com o teu, mas é onde eu solto meu grito :)

Anônimo disse...

Adorei, adorei Simone.

Na verdade, a vida é assim mesmo: palavras... feridas... perdão. Nem sempre nessa mesma sequencia. O melhor seria que não precisássemos disso para aprender, mas, às vezes, parece inevitável.

Parabens, o teu blog tá ótimo.

Ricardo Imaeda disse...

Simone,

Olá. Td bem?
Saiu uma matéria na Folha de São Paulo sobre 'O céu de Suely' e sua participação no roteiro. Não sabia tb que vc é socióloga (portanto, uma colega de profissão ou formação).
Um abraço aqui de São Paulo.