domingo, 22 de outubro de 2006

Cultura e mercado



As transformações experimentadas desde o final do século XX, em nossas sociedades, tornam-se um desafio para gestores culturais pois, à elaboração de políticas públicas mais incisivas nesse campo, deve-se observar, por um lado, a presença e a permanência de valores culturais locais, o diálogo entre culturas, as distinções do que se produz, circula e consome nas relações cotidianas por indivíduos e grupos e, por outro, a cultura como fenômeno de mercado, que move empresas e grupos multimídias, que fazem circular conteúdos, disseminando padrões culturais globalizantes (as indústrias culturais) .
Os movimentos de integração regional e as reivindicações de expressão das diversas culturas explicam, em parte, o novo interesse pela cultura, soma-se a isso, o fato que as indústrias culturais modificam, assustadoramente, os modos tradicionais de criação e difusão da cultura e provocam importantes mudanças nas práticas culturais. A indústria cultural, informa a Organização das Nações Unidas (ONU), é responsável, hoje, por cerca de 9% das riquezas produzidas no mundo (o produto Interno Bruto, ou PIB). Impulsionada pelo conjunto de empresas e instituições com atividade econômica voltadas à produção de conteúdos culturais, cujos fins de seus suportes, difundidos por meios como a televisão, o rádio, o cinema, o vídeo, a internet, fogem à lógica da simples compra e venda de mercadorias. De maneira vertiginosa as novas tecnologias, baseada na rede mundial, reduzem custos comerciais e revolucionam a natureza dos bens e serviços que utilizamos e consumimos.
O comércio de bens culturais cresceu cinco vezes entre 1980-1998 e se caracteriza por novos padrões de produção e consumo, com forte tendência global das mercados culturais. Analisando 120 economias, a Unesco (2005) constatou que apenas três países, o Reino Unido, os Estados Unidos e a China, produzem 40% dos bens culturais negociados no planeta. As vendas da América Latina e da África, somadas, não chegam a 4%. Nesse quadro, é bom ressaltar que a globalização representa um enfrentamento a diversidade, pois tendem a uniformização e empobrecimento da oferta cultural. (...) “Nesse sentido, a cultura é, ao mesmo tempo um instrumento de paz e conciliação, como tambem um poderoso fator de desenvolvimento, que pode inclusive traçar o caminho para um futuro planetário compartilhado”.
Se por um lado o consumo cultural se expande por todo o mundo e sua produção tende a se concentrar nas mãos de grupos, por outro, países, estados, cidades de todo o planeta, assumem o desafio de implementar políticas que detenham a “máquina de produzir desejos”, o poder de distribuição dos grupos dominantes no mercado do “entretenimento”, criando alternativas de fomento às produções locais, através de iniciativas econômicas, tecnológicas e culturais.
A comunidade européia adota desde 1980, quando identifica o atraso de seus países em relação aos Estados Unidos, políticas de criação de um mercado comum de radiodifusão; resoluções relativas ao desenvolvimento de uma indústria de programas de TV; combate a pirataria audiovisual definindo os modos de difusão de obras cinematográficas por parte dos meios de comunicação; em 1985, anuncia ações destinadas a abrir o mercado do audiovisual à concorrência, promovendo o cinema e a televisão européia, tornando-a mais competitiva. Na França, por exemplo, 40% das músicas executadas no rádio têm de ser em idioma francês. O governo subsidia a produção de filmes nacionais para a televisão e desde 1983 o Instituto para o Financiamento do Cinema e das Indústrias Culturais oferece garantias de 50% a 70% do valor dos empréstimos concedidos pelos bancos aos empreendimentos do setor. O volume de vendas saltou de 1,5 milhão de CDs em 1992 para mais de 39 milhões em 2000.
O Canadá, que possui um programa nacional de educação para a mídia, em 1980 criou a lei que permite a liberação de verbas para programas de formação, de abertura de empresas e de criação de empregos no setor audiovisual. Em 1993, treze anos depois, a partir de estudo sobre os seus resultados, constatou-se que cada dólar aplicado em atividades relacionadas à cultura gera 3,2 dólares na atividade econômica como um todo. Hoje, o Conselho da Cidade de Toronto informa que somente no município existem 190 mil pessoas (14% da força de trabalho) atuando na área cultural em empresas que faturam cerca de 9 bilhões de dólares por ano.
Na Argentina, 10% do faturamento dos cinemas, 10% das locadoras de vídeos e impostos pagos pela publicidade em geral são recolhidos por uma autarquia para subsidiar a produção nacional de filmes. Em 2003, em plena crise econômica, o país produziu 50 longas-metragens, o dobro da média registrada entre 1980 e 1990.
Segundo dados do IBGE (2003) a atividade audiovisual no Brasil correspondia, em 2001 a uma receita operacional líquida de 11,235 bilhões de reais. O mapa da receita do audiovisual ainda revela a seguinte distribuição percentual: São Paulo, 53%; Rio, 20%; Sul 10%; Nordeste 6%.
Para estimular a produção brasileira do setor do audiovisual, “estabelecendo uma base territorial de criação/produção/difusão, uma efetiva rede inclusiva de novos protagonistas regionais”, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (2003-2006) adota uma política permanente de fomento (editais) à produção de filmes e vídeos de todos os gêneros, a produção de jogos eletrônicos; produção de conteúdos televisivos e a política de regionalização do audiovisual, a partir da instalação de núcleos de produção digital em diversos estados brasileiros. No que se refere à distribuição, acrescente-se os projetos de ação política externa, tendo o Brasil numa situação de protagonista, voltadas a ampliação dos laços comerciais e culturais no Mercosul e Ibero-América. E, nos últimos dois anos, a proposta de regulamentação do setor, a Ancinav, que sistematizou a elaboração de uma Lei Geral das Comunicações e ampliação da Agência Nacional de Cinema - Ancine para um organismo abrangente, que inclui todo o espectro audiovisual em suas atribuições de fomento, fiscalização e regulação.
No Estado do Ceará, entre os anos de 1993 a 1998, foi dado inicio um projeto de políticas públicas para o desenvolvimento do setor audiovisual no estado, através da Secretaria de Cultura e Desporto (SECULT). Uma política cultural pensada a partir de um programa que incluía informação/formação, criação/produção e difusão. O Ceará se posicionava nessa área estratégica e criava as bases de desenvolvimento de uma indústria audiovisual regional/local. Assim foram criados: uma escola de artes - o Instituto Dragão do Mar de Artes e Indústria Audiovisual, a lei de renúncia fiscal para financiamento de projetos culturais (Lei Jereissati); o Bureau de Cinema e Vídeo do Ceará para a articulação das produções audiovisuais locais no âmbito nacional e internacional; a política de editais; além de ações complementares como o apoio aos festivais e cineclubes. Um desafio iniciar um programa de ação de interferência cultural inédita, pois sua concepção, ao mesmo tempo em que rompia a lógica clientelista das políticas culturais do estado, propunha-se um programa de inclusão que visava qualificar qualquer cidadão interessado em desenvolver alguma habilidade no setor do audiovisual, em todo o estado do Ceará.
Os anos seguintes foram um marco na política audiovisual do Ceará, pelo que destruíram. De 1999 a 2006 os gestores da Secretaria de Cultura do Estado passam a considerar a atividade audiovisual como em fase de extinção. Poderia ter se superado as fragilidades da política anterior, ampliado e analisado, através de estudos sobre os resultados obtidos, saber das mudanças ocorridas no setor audiovisual, entre outras ações. A opção, no entanto, foi pelo desmantelamento de sua estrutura, fechando o Bureau de Cinema e Vídeo e a escola, o Instituto Dragão do Mar.
Hoje a política de audiovisual resume-se aos editais de cinema e vídeo promovidos pela SECULT, como política compensatória, uma forma de se acalentar realizadores e seus projetos adormecidos e a tentativa de re-estruturar o Bureau de Cinema e Vídeo.
A Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (FUNCET) (2006-2009) - ainda devedora de um Plano Cultural para a cidade – rabisca sua política de audiovisual, em sintonia com os programas da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, reproduz modelos existentes - política de editais, criação de núcleo de produção digital e reedita uma escola de audiovisual nos moldes do Instituto Dragão do Mar. Acena para a criação de uma TV popular, importante ação hoje, quando vivemos um processo de discussão sobre a regulação nas telecomunicações e seus conteúdos. Mesmo com a posição difícil na concorrência com a televisão comercial, pode-se efetivamente construir alternativas de programação mais adequadas às necessidades de desenvolvimento local, independente, experimental, diversificada, mais próxima do mundo da vida das populações locais, mais adaptados às culturas populares etc.
Observando as orientações das políticas públicas do Ceará, nota-se que faz falta ainda um enfrentamento direto dessa interface da cultura com o mercado (talvez começar com uma cartografia socioeconômica desse universo – o que se sabe, por exemplo, sobre a indústria do forró ou do mercado da música instrumental?) pois, se é certo dizer que os bens e serviços culturais constroem e transmitem valores, produzem e reproduzem identidades culturais, também são fatores livres de produção e fruição nessa nova ordem mundial.

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