domingo, 26 de novembro de 2006

Chuva de meteoros

Van Gogh, the hills of paradise

o dia amanhece, luzes amarelas, parece uma pintura de Van Gogh - que afirmou ser o amarelo a cor do nascimento e da loucura. “não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, não há visões, nada de alucinações. é a verdade tórrida de um sol das duas da tarde.” disse Antonin Artaud, pouco antes de morrer. aqui, o dia ainda amanhece, e percorro os raios amarelos do sol cercados por nuvens. sim, aqui há visões, alucinações, vertigens, um universo em transe ainda às cinco horas da manhã, quando a verdade não é tão abrasadora. o olho se perde nessa imensidão do céu e se trai, criando imagens que se movem e rapidamente são abatidas pelo vento. mais etéreo, só os sentidos. vejo bichos e gente, algumas estátuas gregas. entre pássaros, uma nuvem faz lembrar tua imagem, os cabelos em cachos dourados, um anjo medieval... e logo um cheiro de doce sabor contamina o ar e me transporta pro teu espaço infinito, teu casco de caracol, teus extremos. lembro das alegorias em Hamlet - uma tragédia, que refere-se também aos modelos cósmicos que se debatiam no século XVI - de um lado, o pensamento visionário, que aprisionava a humanidade: "Oh! Deus. Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito" - e do outro, idéias que tornavam livre a humanidade para o universo: "Há mais coisa entre o céu e a Terra, Horácio, do que pode sonhar a tua filosofia". teu lugar é essa morada de fantasmas saídos do século de Hamlet, uma Dinamarca, e também espaço sem fim, de onde murmuras memórias, vomitas dores, desestabilizas as certezas, com tal força e acidez que faz da noite uma longa jornada, intrépida chuva de meteoros, que me tocam gravemente, nesse amanhecer amarelo, feito de rastros de luz deixados para trás.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

"¡que viva la ciencia, que viva la poesia!"

nesse domingo, quando parei para escutar o disco 12 segundos de oscuridad, de Jorge Drexler, lembrei de três passagens pelo Mercat de les Flors . a primeira, quando assisti (acho que a palavra não é bem essa) o espetáculo Manes da Companhia de teatro La Fura dels Baus, de onde saí atormentada e suja (literalmente), e depois, a leitura livre que eles fizeram do Fausto de Goethe: F@austo versión 3.0. adrenalina que jamais experimentei em uma apresentação de teatro. mas de La Fura não sou eu quem vai dizer do seu vanguardismo. a outra, mais delicada, o show Llueve de Jorge Drexler, quando fomos porque você insistiu em nos apresentar o tal cantor/compositor/instrumentista e (médico) uruguayo. do show aprendi o refrão de “no pienses de más”, a mais poética desse disco, é verdade. desde então, nutro absoluta paixão por Jorge Drexler. graças a você, quem aqui se fez presente nessa primeira escuta de 12 segundo de oscuridad, num dia opressor de tão quente, na cidade de Fortaleza. Acho que você sabe que Drexler atravessou o Brasil, com a música tema de Diários de Motocicleta, (vai retrucar dizendo que viu o filme no multiplex perto da tua casa)... tenho arquivadas algumas das canções dele, quase todas, revelo. inclusive aquelas em dueto com Jarabe de Palo . gosto das suas canções (ele faz da música pop algo sofisticado) e em especial gosto de sua poesia... bacana esse diálogo de Jorge Drexler com o Brasil (agora também através dele me reaproximo de você) em 12 segundos de oscuridad. as participações de Paulinho Moska, Maria Rita e Arnaldo Antunes são geniais; mas me emocionou mesmo a versão com violão de “High abd dry”, de Radiohead. esse cd é melancólico demais..., sabe e parece que gosto disso, sua temperatura pode nos levar a uma abstração do mundo, combina com a oscuridad momentânea de hoje, talvez essa a razão também de te escrever. saudades!

http://www.youtube.com/watch?v=82MMYpbC6RA

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Ad Infinitum

"esta crônica é prá você, oh meu amor..."

submergimos em conversas. num bar que não lembro o nome, plantado numa esquina. chegamos o lugar ainda vazio. um garçom, numa das mesas, lia um livro e exibia uma tatuagem que me encantou e você nem ligou. uma garçonete agradável nos atendeu. pedimos uma cerveja, seu gosto, meio amargo, me traz sempre lembranças bem felizes... e também me passa o filme de comerciais da marca: um deles, uma história de um vampiro que prefere o líquido de uma long neck ao sangue de sua vítima; um outro, o lobo mal que não come a vovozinha e bebe todas as latinhas que estavam na geladeira da indefesa velhinha... cada comercial, em preto e branco, trazia em cores a garrafa verde e seu conteúdo surgia como a seiva da vida. esse era, pois, o mesmo elixir que tomamos naquela noite, quando celebramos a vida, em companhia de uma tela de plasma que exibia clipes. pensei: melhor que voz e violão... enquanto as músicas se sucediam e distraiam olhos e ouvidos, íamos conversando sobre nós, mais você sobre você, dizendo coisas que têm a maior importância, banalizadas entre comentários sobre a trilha do bar. elegíamos afinidades: chico, caetano, cazuza, fred mercury, cássia eller, o rappa, los hermanos.... toni garrido eu gosto, você não. djavan, eu detesto, incondicionalmente e você faz concessões, vê beleza em "Se".!!! então tá, me diz... qual maior estupidez escrita/cantada que a rima: “São Jorge por favor me empresta o dragão/mais fácil aprender japonês em braile/do que você decidir se dá ou não”? ah! isso não combina nada com teus sinais de delicadeza, como quando me apresentou Ana Cristina César. “frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que não é mudez”... naquela altura os habitantes do bar se anunciavam. ali uma tribo demarca seu território, eles fumam e se vestem com ilusória exclusividade... talvez venham ouvir aquela seleção de músicas, nada inusitada... dispersão, a cerveja já mostrava seu poder de extermínio. hora de deter o estrago anunciado. a seguir, a alma incauta, proferiria sentenças veladas no resto da noite. a ressaca, sem tamanho, seria mitigada apenas, sim, apenas por outra poesia, dita ao telefone, que provocou, afinal, o desejado sono intenso do outro dia. acordei, somente, quando li a minuta de amor e vi minha cara estampada numa pintura impressionista, refletindo sobre esses e outros estilhaços que nos carregam ad infinitum ...

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Paul Celan

Marc Chagal, le promenade


Distâncias

Olho no olho, no frio,

deixa-nos também começar assim:

juntos

deixa-nos respirar o véu

que nos esconde um do outro,

quando a noite se dispõe a medir

o que ainda falta chegar

de cada forma que ela toma

para cada forma

que ela a nós dois emprestou.

( Paul Celan. trad.: Claudia Cavalcanti )

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Livros

[ le reploiment vierge du livre, encore,
prête à un sacrifice dont saigna la tranche
rouge des anciens tomes ;
l´introduction d´une arme, ou coupe-papier,
pour établir la prise de possession.
Stéphane Mallarmé. ]

hoje fui na siciliano ver livros. delicioso ritual. sempre lembro Walter Benjamin que compara livros e putas. : “ao ver livros e putas ninguém diz que os minutos lhes são precisosos. mas quem se deixa envolver mais de perto com eles, só então nota como têm pressa.” na livraria sempre passo horas olhando capas, folheando, às vezes sinto o aroma..., outras leio as orelhas, prá ver se interessa. um modo meio escolástico de passar pelas prateleiras...sem distinção, pego livros ao acaso e me detenho... raramente livros de sociologia ou política (ato falho?) e mais livros sobre cinema, poesias, infantis, romances – neles, o maior tempo, as vezes de culinária, olhando as imagens dos pratos, nunca lendo as receitas. sempre levo um livro prá casa. e depois para a cama. “livros e putas podem se levar para a cama”. da última vez, dali mesmo, saí com uma edição, em inglês, de uma obra de Lewis Caroll. para minha Ursula, pequena leitora... hoje era diferente, fui direto à estante aonde estavam os livros do Paul Auster, queria um, em especial, cujo título é belo: achei que meu pai fosse deus... e estava lá me esperando, eu acreditei! depois retirei um romance de outro autor... li comentários da crítica literária na contra-capa. “livros e putas – cada um deles tem sua espécie de homens que vivem deles e os atormentam. os livros, os críticos”... saí com dois livros e a urgência de devorá-los no fim de semana....afinal, “livros e putas entrecruzam o tempo. dominam a noite como o dia e o dia como a noite.”

citações de Rua de Mão Única, de Walter Benjamin.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

České Velenice

o nome de uma cidade. vi num documentário, que peguei já no final, quando se falava dos problemas de sua população. situada no leste europeu, na República Tcheca, fronteira com Gmünd, na Áustria. uma distancia de vizinhos: de České Velenice se enxerga Gmünd. num percurso de 10 minutos a pé e já se está em outro país. o documentário falava de seus habitantes: tchecos, claro, e refugiados que ali aportaram, principalmente vietnamitas. falava também da interação entre eles, pelo esporte... o documentário me atiçou a curiosidade. mais tarde, na internet, busquei informações sobre a cidade. mas quase nada em língua portuguesa, excessão para um diário de um turista paulistano, que pernoitou por lá, e registrou seu encantamento com a cama king size do hotel 4 estrelas e o módico preço do táxi que pagou do hotel à estação de trem. aqui, bem longe de České Velenice, está o meu desejo de caminhar numa outra planície, aonde nada lembre a paisagem, a fala, os rostos, a brisa local, e também dormir numa cama com outro cheiro. me deitar e esquecer o dia de hoje.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Stand by

ou crônica de um dia de eleição
domingo, 29 de outubro. bem cedo vejo apressadamente um jornal, navego também por outras mídias, uma revista, um blog jornalístico. como Caetano, pergunto, “quem lê tanta notícia?” hoje é dia de eleição lembram as manchetes dos meios. a seguir faço o caminho da casa de minha mãe, e logo, uma parada obrigatória na sessão eleitoral. votar e almoçar: necessidades básicas. enquanto espero a hora de teclar, observo o movimento dos eleitores. essa cidade é vermelha, concluo. sol quente aquece mais o dia de votação. penso sobre a política. recordo um filósofo que disse, lucidamente, que precisamos repolitizar a esfera política e fazer o mundo mais humano. uma outra caminhada a se fazer. me parece urgente e bem mais longa. vou sim, repolitizar minha vida, minhas ações no mundo. decisão irrevogável. e entre especulações sobre o menu do almoço de domingo, tento me organizar. primeiro, saber dos fundamentos da política. começar, claro, pelo básico: A República(Platão) Do Contrato Social, (Rousseau) depois o fundamental, Democracia na América (Tocqueville), o Manifesto Comunista, (Marx) - melhor a edição em quadrinhos, leitura rápida e mais prazerosa - finalizar com a importância da política como ação, como processo, A Condição Humana (Hannah Arendt). ler, reler, rever posições. revolver! depois pegar a arma, digo, o verbo: discutir, contaminar os espaços com o firme discurso. e também tomar posições, atitudes...
tenho o pressentimento que essa seleção será derrotada pelos livros de poesia, os romances que me esperam enfileirados, sempre existem bons livros em stand by , e os filmes, e a praia, imprescindíveis à felicidade e o trabalho e os fazeres domésticos, tudo o que consome a existência. então, como inserir a política nessa agenda? qual mágica me transformará num ser consciente, politicamente correto, com ideologia definida, me situando estrategicamente? não posso mais fazer parte dessa horda de cooperados involuntários despolitizados. a aspiração de humanizar o mundo me mobiliza, nesse dia de eleição. melhor então fazer uma faxina do essencial e do supérfluo nessa agenda. então, combinado, fica prá depois do Carnaval, essa leitura obrigatória e a ação conseqüente (teoria+prática).mas antes tenho que contribuir com a democracia, votar. fortalecer nossa frágil democracia que ainda em sua infância, prescinde da via eleitoral....
então, será simples, teclar o número cabalístico, 13. e esperar, em estado de alerta, a virada do ano. novembro vem aí, depois natal, reveillon e já já é Carnaval. então, ano novo, práxis política nova, pois, por enquanto, certamente o melhor do dia será me deliciar na cozinha de mi madre.